quarta-feira, 28 de julho de 2010

Personalité


Boneca de retalhos. Vestido de azul predominante. Azul escuro: era o que podia enxergar. Cabelo de lã marrom, rosto de tecido rosado. Olhos de vidro. Tanto tempo habitando aquele canto. Assistiu muitas histórias á noite, contadas entre risinhos, criança enrolada em edredom, o sono que sempre vencia a guerra árdua com pálpebras persistentes, olhar fixo de mãos carinhosas e cuidadoras com leve toque de proprietária, no seu vai e vem constante, delicado e vagaroso por aqueles fios finos desenhando o amor diferente, amor de dona que nada tem e sabe disso. O beijo de leve na testa. Daquele canto assistiu o esforço do soletrar, o alvo demoradamente alcançado entre arquejos e repetições várias, mínimos longos momentos de pernas retraídas e coçar de pés de ansiedade por conseguir... De súbito, pressa, passos, gritos para demonstrar seu último feito. Encheu todo o quarto e casa com sua conquista, só os primeiros passos pode ser visto. Sabia de tantas opiniões, atitudes, descrições, experiências que em toda sua vida de boneca foi adquirida a custa de longa observação de seus olhos eternamente abertos. Não tinha nada. Ninguém sabe que ela reconhece a cor da borda do seu vestido, que ela assistiu momentos de intimidades maternais e, inclusive, decorou várias histórias e, às vezes, torcia silenciosamente pelas suas preferidas, riu diversas vezes das mesmas histórias e apesar da garotinha de fios finos não ter percebido em muitas ocasiões soprou a resposta do soletrar. Ninguém notou. Ela persistia em existir, raciocinar com seus miolos de pano nos dilemas da vida. Ela partilhava de uma família, tinha um lar, um quarto, um espaço na instante compartilhado com várias companheiras de sua espécie. Sim existia. Não criou nada grande, não tinha em seus traços, retalhos, composição, exceto o azul da borda de seu vestido, nada que a torna-se diferente de outras bonecas do ambiente. Tinha vida ao seu redor, tudo que poderia ocorrer na vida de um quarto ela participou como eficiente expectadora. A cabeça de fios finos aprendeu a soletrar habilmente, ler, escrever, aprendeu a crescer, aprendeu que não precisava mais de bonecas ou não era mais adequado tê-las por perto. O tempo sussurra esses estribilhos (das mudanças) aos ouvidos com tamanha sutileza que nem se aproveita o último brincar de boneca, voar no balanço. Gente cresce que nem nota... Nem nota a última brincadeira. Caixa no porão, lacrada como se ali habitasse um ser alta periculosidade. Uma hora isso iria acontecer, não era novidade, destino de toda boneca... Inexistir na vida de alguém, passar de objeto de extremo valor e cobiça por olhos e mãos inexperientes á representação do nada. A menina de fios finos seguia a rigor os paradigmas, anseios, dúvidas, atitudes de sua idade, assim como um dia correspondeu às expectativas de uma criança de sua época e cultura e um dia corresponderá às expectativas de adulta de uma forma ou de outra. E vai vivendo. Durante a transferência de habitar da boneca, esta lembrou de todos os momentos felizes que ocorreram naquele lugar, queria chorar, pelo menos uma vez exprimir o que se passava em sua cabeça, mas olhos de vidros não choram. Pensou que se pudesse ao menos andar teria uma vida brilhante, pois aprenderia a observar o comportamento de todos em todos os outros cômodos da casa e, quem sabe, adiante do grande portão que ultrapassou entre outras caixas uma certa manhã há muito tempo. Se pudesse, teria uma vida encantada, totalmente diferente de todas as bonecas da instante em que viveu e foi particularmente igual em rotina... Não teria enfeitado camas e instantes, tomado chazinho em copinhos plásticos em que nada há e morado em casinhas de madeira. Teria morado no escritório ou no banheiro. De todo jeito era morar e observar uma rotina de um lugar, mas só de imaginar observar a vida por ângulos incomuns para bonecas, se sua boca tivesse profundidade certamente estaria cheia d’água, de ânsia de vida. Enquanto a garota de cabelos de fios finos correspondia às expectativas dos anos, do espaço existente entre o céu e o solo, a boneca em seu céu negro desenhava estrelas brilhantes, furta-cores e sempre imaginava o que existia além delas.
Por, Hilda Elizabeth

terça-feira, 13 de julho de 2010

Toque( TOC)...


Três horas da manhã. Três da manhã e nada de dormir. Meu Deus. Mas como vou dormir após um dia como este. Que dia!
Vou ligar para Flávia, ela sempre me entende.
Bem na parte em que o rapaz do metrô lhe oferecia um sorriso de segundas intenções e ela se percebeu orando para que ele não notasse seu entusiasmo, ela escuta ao longe um barulho, deu de volta um sorriso na medida certa... E, de repente, como se homem-aranha a tivesse agarrado de costas pela cintura, se viu, em milésimos de segundo, sendo sugada de tudo aquilo e dando um pulo em sua confortável cama de lençóis verdes. Poxa, ele não pediu meu telefone... mas quem estará me ligando a esta hora e observa com preguiça e ainda coçando os olhos o relógio de cabeceira que marcava pontualmente que aquilo não eram horas para se ligar para ninguém. Flávia olhou para ele com carinho e agradeceu a compreensão. Chão frio. Sapateia em busca das pantufas... Em vão. Ainda berrando, o telefone tal qual criança, não cansava de afirmar sua existência e necessidade. Meio cambaleando, adequando a visão a claridade repentina, senta no braço do sofá e atende:
- Alô, Flá... Sou eu amiga. Sei que é tarde, mas eu tive um dia terrível, terrível!
- Olá Celina, o que foi dessa vez?
- O que foi dessa vez... Essa é boa! O que é sempre... Sabe a lei de Marphy. Eu sou a personificação dela. Acordei e o Alê tomou banho e molhou a privada. Poxa, eu estava toda quentinha e sento no assento... Na hora até arregalei os olhos, tem noção?Musculação para os glúteos ás 6h da manhã, é dose. E isso não é nada! O papel tinha acabado e tive que abrir outro rolo e você sabe como eu me irrito em ser a primeira usuária do rolo de papel. Eles não colaboram! Não tem unha certa que faça ele desenrolar, impaciente arranquei quase uma resma para desenrolá-lo. Daí fui tomar café e ao me levantar para pegar um guardanapo, o Alê comeu o último pedaço de misto quente do meu prato e bebeu meu último gole de café.O último, dos dois, você sabe, todo o sabor está concentrado na última mordida e no último gole. Isso não se faz nem com um inimigo, nem com um inimigo. Fui trabalhar e pelo menos isso foi igual a todos os dias, mas ao voltar para casa em pé no ônibus, aquele aperto, e um pessoa ao meu lado roçava, é essa a palavra tenebrosa, roçava o braço no meu, não de um forma de assédio, não, nada disso, mas sabe aquela encostadinha de leve em sintonia com o movimento do ônibus e tem horas que são só os pêlos de ambos braços que se encontram, nessas horas, juro que até minha hipófise se arrepiou de agonia. E você tem noção de quanto tempo tive que respirar fundo e passar por essa aflição... Ao descer do ônibus, um rapaz estava vendendo jujubas e finalmente senti alegria... Nem precisa dizer que tenho que parar de comer porcarias e levantar bandeiras pelas cenouras e alfaces, não adianta amiga, sou maníaca por doces e jujubas nem se fala. Mas, ao abri o pacote, constatei indignada que não havia uma, sequer uma, de morango ou de uva! Apenas abacaxi e limão... Agora me diga se não tenho razão: se não sou a encarnação da lei de Marphy.
Flávia escutou apática e com toda atenção que podia as informações que desesperadamente sua amiga jorrava. Lhe deu alguns conselhos de livros de alto ajuda com tom de propriedade no assunto. Mandou Celina respirar fundo três vezes e prometer que ao desligar o telefone iria colocar suas meias de bolas coloridas (aquelas que ela acreditava chamar bons sonhos), colocar a caneca com água na cabeceira da cama (já que Celina tinha plena certeza que acordaria com sede de madrugada e teria que levantar, pior, criar coragem de levantar, caminhar, encher o copo com água e, só depois de tudo isso, cambalear de volta para cama. A certeza da seqüência dos fatos a deixa tão ansiosa que ela tinha insônia quando já estava entrelaçada por seu edredom e não tinha posto a bendita caneca ao lado da cama). Após cantar toda essa mantra, já que os ataques de Celina não era, infelizmente, acontecimento raro, Flávia pôs o telefone no gancho e, entre as trombicadas de volta a cama, pensava se o rapaz de sorriso fácil ainda estaria no metrô.

domingo, 4 de julho de 2010

Um homem para chamar de seu...


Antes só do que mal acompanhada (será). Século XXI... As mulheres lotam as universidades, o mercado de trabalho e consolida a conquista do seu espaço no mundo da política... Mas, como sempre existe um mas... Observei por longa data um grupo em especial de mulheres: as humilhadas-felizes. A humilhada-feliz cresceu no mundo da inverdade: mulher precisa de marido, um ser de outra espécie ao seu lado para ser completa. Como a humilhada-feliz não faz parte de uma geração tão antiga assim, ela não precisa de “marido” para comer, vestir, morar, a plena verdade é que a mulher em questão não precisa financeiramente de um marido para nada. E ela tem tudo isso. Contudo sempre lhe faltava o essencial: o casamento, a festa, o vestido, a aliança para exibir com orgulho: não sou uma qualquer...Sou CASADA. Também quer o registro em cartório de “pertence de alguém”. A humilhada-feliz em seus relacionamentos nunca conseguiu guardar esse seu sentimento que querer pertencer. Até que a duras penas e depois de muita novela das 20h, ela conseguiu tudo que sonhou: vestido, igreja, aliança, jogar buquê, testemunhas e o principal: o marido. E conseguir isso não foi nada fácil, pois enquanto casar é coisa mais simples e lógica seqüencial óbvia para algumas mulheres, para esta espécie que exala sentimentos, isso é uma conquista de muito esforço engajada com boas doses de falta de amor próprio para ganhar essa parada. Já que não é de hoje que se sabe que ser humano é um bicho bem esquisito: aprecia quem despreza e despreza quem os ama... A velha e boa insatisfação terrena. A humilhada-feliz é movida a jargões como: “Aquilo que os olhos não vêem o coração não sente” e “No fim das contas, é comigo que ele vai ficar”... e assim deixa passar todas as destratos públicos e as puladas de cercas do futuro marido ... Enquanto casada: lava, passa, cozinha... Dona de casa com louvor e sem qualquer reconhecimento de absolutamente nada, só alfinetadas e grosserias sem motivos diariamente... Há muito o marido em questão sabe do pavor desta mulher em perdê-lo, então...
A humilhada-feliz chora calada. E nem adianta tentar conversar com ela, pois por mais que ela comente cada vez que tem oportunidade o quanto seu marido é estúpido e grosso, esta não pensará duas vezes, não pestanejará em defendê-lo com unhas e dentes e aos votos de casamento durante as discussões cotidianas... A humilhada-feliz adora se sentir vítima, adora que todos reconheçam o quão boa esposa ela é e que nunca aquele homem arrumará outra igual a ela... Esses momentos somado a pequena alegria de dizer pra quem quer que seja “Sou casada” é o combustível de vida desses seres que todos os dias com deveras paciência cosem seus trajes de humilhação. Ela cria em sua mente repleta de aceitações de desgraças que quando namorava, ele era muito diferente... É impressionante como todas tem o mesmo discurso e uma esperança inabalável na epifânica transformação do marido em questão... Um dia este passará por debaixo do arco-íris e será outra pessoa. A humilhada-feliz é comentada por toda vizinhança, cozinha entre lágrimas, dorme sozinha muitas e muitas noites, mas ao amanhecer... Orgulhosamente põe sua aliança em seu dedo esquerdo e ao observar sua calejada mão é tomada por aquela sensação tão peculiar de segurança, constatação que não precisa de mais nada na vida, nem de ninguém, certeza de não ser só: é completa!... E então, renova suas esperanças e fé nesse novo dia, acredita cegamente, sendo está a palavra exata, que este dia será diferente... Este dia ela será amada, querida, feliz... Santas mulheres... Movidas á resignação, humilhação contínua e uma esperança sem precedentes... Uma vida de massacre diário e alegrias tão ínfimas.