Boneca de retalhos. Vestido de azul predominante. Azul escuro: era o que podia enxergar. Cabelo de lã marrom, rosto de tecido rosado. Olhos de vidro. Tanto tempo habitando aquele canto. Assistiu muitas histórias á noite, contadas entre risinhos, criança enrolada em edredom, o sono que sempre vencia a guerra árdua com pálpebras persistentes, olhar fixo de mãos carinhosas e cuidadoras com leve toque de proprietária, no seu vai e vem constante, delicado e vagaroso por aqueles fios finos desenhando o amor diferente, amor de dona que nada tem e sabe disso. O beijo de leve na testa. Daquele canto assistiu o esforço do soletrar, o alvo demoradamente alcançado entre arquejos e repetições várias, mínimos longos momentos de pernas retraídas e coçar de pés de ansiedade por conseguir... De súbito, pressa, passos, gritos para demonstrar seu último feito. Encheu todo o quarto e casa com sua conquista, só os primeiros passos pode ser visto. Sabia de tantas opiniões, atitudes, descrições, experiências que em toda sua vida de boneca foi adquirida a custa de longa observação de seus olhos eternamente abertos. Não tinha nada. Ninguém sabe que ela reconhece a cor da borda do seu vestido, que ela assistiu momentos de intimidades maternais e, inclusive, decorou várias histórias e, às vezes, torcia silenciosamente pelas suas preferidas, riu diversas vezes das mesmas histórias e apesar da garotinha de fios finos não ter percebido em muitas ocasiões soprou a resposta do soletrar. Ninguém notou. Ela persistia em existir, raciocinar com seus miolos de pano nos dilemas da vida. Ela partilhava de uma família, tinha um lar, um quarto, um espaço na instante compartilhado com várias companheiras de sua espécie. Sim existia. Não criou nada grande, não tinha em seus traços, retalhos, composição, exceto o azul da borda de seu vestido, nada que a torna-se diferente de outras bonecas do ambiente. Tinha vida ao seu redor, tudo que poderia ocorrer na vida de um quarto ela participou como eficiente expectadora. A cabeça de fios finos aprendeu a soletrar habilmente, ler, escrever, aprendeu a crescer, aprendeu que não precisava mais de bonecas ou não era mais adequado tê-las por perto. O tempo sussurra esses estribilhos (das mudanças) aos ouvidos com tamanha sutileza que nem se aproveita o último brincar de boneca, voar no balanço. Gente cresce que nem nota... Nem nota a última brincadeira. Caixa no porão, lacrada como se ali habitasse um ser alta periculosidade. Uma hora isso iria acontecer, não era novidade, destino de toda boneca... Inexistir na vida de alguém, passar de objeto de extremo valor e cobiça por olhos e mãos inexperientes á representação do nada. A menina de fios finos seguia a rigor os paradigmas, anseios, dúvidas, atitudes de sua idade, assim como um dia correspondeu às expectativas de uma criança de sua época e cultura e um dia corresponderá às expectativas de adulta de uma forma ou de outra. E vai vivendo. Durante a transferência de habitar da boneca, esta lembrou de todos os momentos felizes que ocorreram naquele lugar, queria chorar, pelo menos uma vez exprimir o que se passava em sua cabeça, mas olhos de vidros não choram. Pensou que se pudesse ao menos andar teria uma vida brilhante, pois aprenderia a observar o comportamento de todos em todos os outros cômodos da casa e, quem sabe, adiante do grande portão que ultrapassou entre outras caixas uma certa manhã há muito tempo. Se pudesse, teria uma vida encantada, totalmente diferente de todas as bonecas da instante em que viveu e foi particularmente igual em rotina... Não teria enfeitado camas e instantes, tomado chazinho em copinhos plásticos em que nada há e morado em casinhas de madeira. Teria morado no escritório ou no banheiro. De todo jeito era morar e observar uma rotina de um lugar, mas só de imaginar observar a vida por ângulos incomuns para bonecas, se sua boca tivesse profundidade certamente estaria cheia d’água, de ânsia de vida. Enquanto a garota de cabelos de fios finos correspondia às expectativas dos anos, do espaço existente entre o céu e o solo, a boneca em seu céu negro desenhava estrelas brilhantes, furta-cores e sempre imaginava o que existia além delas.
Por, Hilda Elizabeth
Q texto lindooo!
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